O Jogo mudou
Que o jogo mudou, isso é claro como água. Times como o atual campeão da Champions League Bayern de Munique e o seu antecessor Liverpool simplesmente não fariam o menor sentido antes de 91, época que ainda era permitido que o goleiro pegasse com as mãos bolas recuadas pelos seus companheiros de time. Por que pressionar alto se um simples passe pro goleiro, que pega a bola com as mãos, quebra toda nossa estratégia?
Uma das coisas mais notáveis do futebol que se joga hoje é em relação ao espaço ocupado. Não é raro vermos um amontoado de jogadores ocupando uma pequena faixa de campo. E isso acontece especialmente nas áreas de definição de jogadas: a equipe que se defende está compactada em duas linhas, protegendo a faixa central do campo, enquanto o time que ataca roda a bola em busca de espaço para infiltração ou arremate.
Assistindo a jogos do Campeonato Brasileiro e Premier League, uma coisa me chamou bastante atenção. O Manchester City é talvez um dos maiores expoentes do Jogo de Posição, uma forma de jogar que retém a posse de bola, progredindo de forma segura e gradual no campo, o que naturalmente provoca que o adversário seja empurrado para o seu campo de defesa, protegendo todo e qualquer espaço com todos ou quase todos os jogadores. Mesmo assim, eles conseguem arremates de posições com alto xG. No Brasil, muitas equipes enfrentam situação parecida, com a defesa dos adversários postada lá atrás, porém sem acesso aos mesmos lugares que o City consegue seus chutes.
Isso fica evidente nas imagens abaixo. Utilizando dados da temporada 2018 do Campeonato Brasileiro, 17-18 da Premier League e 19-20 da Bundesliga, ela mostra os chutes com os seguintes filtros:
- Jogadas que tenham pelo menos 10 passes
- Apenas Regular Play (jogadas de organização ofensiva normal - sem contra ataques ou bola parada)
- Apenas chutes com o pé (sem shots de cabeça)
- Jogadas que em algum momento tenham tido a bola no campo de defesa
Assim a gente aumenta as chances de filtrar jogadas que a defesa adversária estivesse com as linhas baixas. Nota para o Bayern de Munique, que tem apenas 34 jogos na amostra, enquanto as outras equipes tem 38.
¹Os pontos azuis são os gols.
Ok, talvez a comparação seja injusta, afinal de contas é o campeão inglês com mais pontos na história, e o Bayern de Munique campeão da europa, uma das equipes mais incríveis já montadas (assunto pra outra hora), com os 4 primeiros colocados do Campeonato Brasileiro 2018, que na minha opinião foi um dos mais fracos que já tivemos o desprazer de acompanhar. Mas nós poderíamos replicar isso pra vários anos e várias ligas, e o padrão iria se repetir - as equipes brasileiras, com raras excessões (Flamengo 2019, por exemplo) têm muita dificuldade de criar oportunidades em áreas do campo de alto xG (ou mais próximas do gol).
Expected Goals não contam tudo
Falando em xG, precisamos revisitar essa métrica, pois apesar de ser uma das mais importantes formas de analisar as equipes, ela deixa de entregar muita coisa ainda. Expected Goals é um modelo estatístico que atribui uma probabilidade de um chute ser gol, levando em consideração algumas variáveis. Essas variáveis mudam dependendo de quem fez o modelo, mas algumas coisas são básicas: a distância de onde o chute aconteceu ao gol, o ângulo gerado, se foi um chute ou uma cabeçada e o tipo da jogada - regular play, escanteio, contra-ataque, etc. Ainda assim, as variáveis que pesam mais são a distância e o ângulo. Nas imagens anteriores, o tamanho do ponto era em função do xG - quanto maior o xG, maior o ponto; fica claro que o xG vai diminuindo a medida que se afasta do gol, o que é bastante intuitivo, pois quanto mais distante do gol, mais difícil de fazer a bola entrar. O xG apenas confirma isso com os dados. O que o xG não pega é o contexto em que esse chute foi dado, e isso faz toda a diferença.
Pressão e bloqueios
Desde a sua concepção inicial, o xG vem sofrendo algumas mudanças na tentativa de descrever cada vez melhor quais são as variáveis que mais impactam uma oportunidade de gol. As mais notáveis são do pessoal do StatsBomb. Eles incluíram a altura da bola em que o chute ocorre e também a pressão que o jogador que chuta a bola sofre. São variáveis que, quem jogou futebol pelo menos uma vez na vida, sabe que têm grande impacto na qualidade do chute que vai sair. Ainda assim, investigando os dados que o StatsBomb disponibiliza de maneira gratuita, a gente percebe que a definição deles de pressão é ampla, especialmente em relação a posição do defensor; o defensor pode estar na frente ou até mesmo vindo de trás em uma tentativa de roubar a bola. É uma variável que está muito mais ligada a velocidade que o defensor se aproxima do atacante, do que sua posição.
O modelo de xG mais recente que eu vi, que traz informações extremamente relevantes para descrever a qualidade de uma oportunidade de gol, é o post do @jernejfl (https://twitter.com/jernejfl), onde ele leva em consideração também a quantidade de oponentes que estão na frente do atacante, bloqueando o chute.
As barras vermelhas e azuis indicam a contribuição (positiva ou negativa) da variável em questão para a oportunidade de gol. No gol do Liverpool contra o Fulham, a barra azul, que corresponde aos oponentes, é grande, indicando que o fato de haver defensores bloqueando o chute, diminui considerávelmente a chance de gol.
O caminho da bola entre o atacante e o gol é tema central desse estudo, e é o que vamos explorar agora.
Como fazer um gol?
Essa é a pergunta que vale um milhão de dólares (na verdade, vendo as cifras atuais do futebol, deve valor muito mais). Um gol é algo extremamente complexo, e eu não tenho a menor pretensão de tentar criar teorias mirabolantes ou trazer estatísticas sem fundamento para explicar a bola na rede. Há a influência de uma infinidade de coisas que podem ocasionar um gol, desde os eventos com a bola, como um drible que abre espaço para o chute, como sem a bola - a movimentação de um atacante, que puxa a marcação, que gera o espaço… Enfim, é difícil explicar o caos e seu desenrolar. Mas algumas coisas são básicas em relação a marcar um gol. A começar pela mais simples de todas: a trajetória da bola.
Sendo o mais direto possível: Para um gol ocorrer, a trajetória da bola, entre o jogador que chuta e o gol, precisa estar livre, sem bloqueios que impeçam a bola sair do seu ponto inicial - o pé (ou a cabeça) do jogador, e o fundo das redes. Não tem nada de genial nisso (ainda que alguns jogadores desafiem a física, chutando em cima do adversário), mas vai começar a fazer sentido o que eu quero dizer. Retomando a primeira parte do texto, o jogo hoje dá muito menos espaço do que em outras épocas, e isso faz com que seja cada vez mais difícil que os jogadores tenham esse caminho livre entre eles e o gol para um arremate que possa correr o risco de ser gol. Assistindo o Campeonato Brasileiro, não são poucas as vezes que a gente ve o time rodar e rodar a bola, sem conseguir infiltrar, pra jogada terminar em um cruzamento.
Agora que sabemos a condição básica para que um gol aconteça, a gente pode ir para o próximo passo e tentar entender como esse espaço é gerado, e em qual contexto. Uma maneira seria contratar jogadores como Ronaldinho, que as vezes fazem magia e encontram espaço onde achávamos que não existia. Infelizmente, ele é só um e já se aposentou há alguns anos, então teremos que buscar outras maneiras de encontrar esse espaço.
Como gerar esse espaço?
Há alguns anos, um cara que marcou época falou sobre espaço e tempo, que as duas coisas estavam interligadas. Esse cara era ninguém menos que Xavi Hernández. E o que Xavi disse repetidas vezes, é o que fundamenta o ponto que quero fazer com esse texto. Espaço e tempo têm relação fundamental no futebol, especialmente em relação a marcar um gol.
Uma pequena revisão do que vimos até aqui: sabemos que precisamos do caminho da bola entre o local do chute e a goleira livre, e também sabemos que as defesas tem concedido cada vez menos espaço. Precisamos olhar agora para o tempo, pois é ele que vai nos dar o espaço que precisamos para o arremate ao gol.
Nas jogadas que falamos no começo do texto, de defesas com linhas baixas e compactadas contra um ataque que roda a bola tentando infiltrar ou achar espaço para o chute, espaço e tempo se relacionam de maneira inversa: quanto mais tempo eu fico com a bola, menos espaço eu tenho para fazer o que quero, e quanto menos tempo eu fico com ela, mais tenho espaço para fazer o que quero. Isso implica que, para que eu tenha um arremate com maiores chances de fazer um gol, eu preciso ficar o menor tempo possível com a bola. Na prática, isso quer dizer chutes de primeira.
A teoria
Equipes como o Manchester City e o Bayern de Munique ficam com a bola, empurram seus adversários para o campo de defesa, mas mesmo assim encontram espaços para chutes de posições com alta probabilidade de ser gol, e isso acontece porque, na hora do arremate, o jogador fica muito pouco tempo com a bola; ele não domina e pensa o que fazer, ele chega chutando de primeira.
Você pode até pensar que nos exemplos acima, Foden e Müller só tinham a opção de chutar. Sim, isso é verdade, mas essa é a grande diferença para o futebol do Brasil. Essas equipes de ponta já sabem que não vão ter espaço, e que depender apenas do drible de um jogador para quebras as linhas ou simplesmente cruzar a bola na área, esperando que o cruzamento seja perfeito e que o centroavante vença o duelo aéreo com o zagueiro, é algo que reduz muito as chances de gol; portanto, essas equipes fazem essas jogadas em que o chute é de primeira, de caso pensado!
As jogadas tradicionais de cut backs de Manchester City e Arsenal são exemplos clássicos. Toda a preparação da jogada é feita para que o atacante chegue chutando, assim ele não tem a resistência ou pressão dos zagueiros e consequentemente mais espaço e ângulo para o gol.
Lembrando que o que buscamos é o espaço para o arremate; o tempo de posse do chute gera esse espaço - ele não é a causa para o arremate. Isso fica claro quando analisamos jogadas de contra ataque, que pode ter um tempo de posse de bola maior. Isso acontece porque, em jogadas de contra ataque, as vezes o jogador progride boa parte do campo adversário sem ou com pouco enfrentamento individual em função da ocupação de espaço do adversário
O que dizem os dados
Com os dados que normalmente usamos, não é possível fazer essa análise. Isso porque a maioria dos fornecedores de dados de futebol carecem de precisão no tempo em que as ações aconteceram, e 1 segundo faz toda a diferença nesse caso. Isso só foi possível com os dados do @StatsBomb, que eu pude comprovar que tem um rigor muito maior em relação ao tempo dos eventos (sim, eu vi muitos lances e comparei com os dados, pra ver se o tempo batia). O Statsbomb fornece cerca de 800 jogos gratuitos (veja (aqui)[https://statsbomb.com/academy/]) - nós utilizamos apenas jogos da La Liga, de diversas temporadas. Agora, vamos aos dados.
São 7177 chutes a gol nos 485 jogos da nossa amostra. Com os filtros que a gente quer, que são:
Apenas chutes (sem lances de cabeça, pois eles poderiam enviesar a análise - a não ser que o jogador seja o Kerlon Foquinha pra ficar com a bola na cabeça, todos as cabeçadas tem posse de 0s de duração, é sempre de primeira)
Apenas jogadas de Regular Play
Pelo menos 10 passes na jogada
O chute precede um passe de um companheiro (assim eliminamos rebotes)
ficamos com 784 chutes. A maioria dos chutes ocorre com 0s, cerca de 41% da amostra. Mas também, são os chutes de primeira que têm o maior percentual de gols, 19%, enquanto os chutes com mais tempo de posse diminuem bastante esse percentual. Abaixo, a frequência relativa apenas dos lances de gol.
O gráfico acima deixa bastante claro que na maior parte dos casos, os gols acontecem na sua maioria em chutes de primeira. Se considerarmos até 1s de posse, estamos falando de 80% dos gols. Vamos aos próximos gráficos, que pra mim, são os mais interessantes. Vamos relacionar o tempo de posse do jogador que chuta e o xG do seu chute.
Chutes de primeira acontecem em várias regiões no campo, desde as menos improváveis (menor xG) até as mais prováveis (maior xG) de ser gol; mas o mais interessante é o formato de triângulo do gráfico, que quer dizer que: para ter acesso as regiôes mais prováveis de fazer gol (alto xG), o chute necessariamente tem que ser muito rápido. Se fizermos um recorte nesse gráfico, mostrando apenas os chutes com xG maior que 0.5, ele vai nos dizer que a grande maioria dos chutes foram feitos de primeira.
Fica bem claro que chutes das regiões com maiores possibilidades de gols acontecem apenas com um tempo de posse próximo de 0.
Implicações
Ok, então o tempo da posse é fundamental para termos espaço para arremates com maiores chances de gol, mas isso não quer dizer que se eu simplesmente chutar de qualquer lugar, contando que seja de primeira, eu vou aumentar minhas chances de gol. Precisamos entender como são geradas essas situações em que o atacante possa chutar de primeira. Comentamos de maneira breve que as jogadas de cut back de Arsenal e Manchester City são exemplos de jogadas que provocam essa situação. Mas obviamente elas não são o único tipo de jogada para isso. City e Liverpool tem maneiras distintas de chegarem ao gol adversário, e ainda assim, a maior parte dos seus gols (empiricamente falando, pois como comentei, com os dados que dispomos, não conseguimos fazer essa análise) caem no mesmo princípio de tempo de posse de quem chuta.
Assistindo a jogos do Brasileiro e de Campeonatos Europeus, a impressão que tenho é que, ainda que essas jogadas ocorram no Brasil, não é de maneira voluntária. Se não é um cruzamento na área, essas jogadas acontecem de maneira fortuita, seja um rebote ou qualquer tipo de sobra de bola. Isso porque ainda temos muito enraizado o individualismo - que o talento dos nossos jogadores, que muito nos deu alegrias, vai resolver esse problema. Isso é culpa de um viés tremendo. Temos na cabeça os lances geniais que grandes jogadores passam por 2, 3 zagueiros e fazem um golaço. Mas o que não levamos em consideração são as dezenas de outras vezes que o jogador tentou driblar e acabou perdendo a bola, quando uma simples jogada de um-dois seria muito mais eficiente. Não estou dizendo que sou contra o drible, obviamente, mas ele tem que ser usado em situações específicas. Dribles são superestimados para gerar espaços. Jogadas coletivas, como o dois-um, são muito mais fáceis de serem executados e podem gerar resultados muito bons nesse aspecto.
Em termos de estratégia, precisamos focar em como gerar essas situações. Qual será o posicionamento ideal no último terço, para que uma combinação de passes gere mais espaço para o chute de primeira? Quas situações o jogador deve ir para o drible e quais ele deve buscar a tabela? Ou então como destruir esse tipo de jogada do adversário? Como evitamos o cut-back?
Próximos passos
O primeiro passo a tomar em relação a esse estudo, é verificar os dados para outras ligas, se há grandes diferenças entre elas. Até o momento, dependemos de quem faz uso dos dados do StatsBomb, ou se os outros fornecedores aumentassem a rigidez em relação a coleta dos dados de tempo.
O uso de tracking data seria fundamental também para avaliarmos o posicionamento dos jogadores nas jogadas analisadas. Eles ajudariam bastante em entender, por exemplo, qual a movimentação dos jogadores e quais espaços atacar.
Esse texto é apenas o começo do que podemos explorar em relação ao tema. Desde a primeira vez que essa ideia começou a pipocar em minha cabeça, todas partidas que eu assistia, eu prestava atenção nessa questão de tempo e espaço das finalizações. Isso faz mais de ano, e o que pude perceber é que algumas equipes conseguem provocar situações de arremates de primeira melhor que outras, de maneira voluntária, e isso traz uma grande vantagem competitiva.
Seria interessante também entender a relação de tempo e espaço não apenas para os arremates, mas para os últimos passes antes do chute. Enfim, o tema é vasto, e cheio de possibilidades, e eu não pretendo ficar apenas nesse texto, então, assim que possível, eu pretendo trazer mais análises sobre ele.